Na coleção das 18-cartas... houve um comentário de que...
a narração de uma história não precisa ser... necessariamente...
cronológica... linear...
na medida em que a leitura vai avançando...
as partes-componentes do "quebra-cabeças"...
passam... naturalmente... a se encaixar...
vamos então nos posicionar no ano de 1966...
eu... com 12 anos-de-idade... frequentava ainda...
o segundo-ano-ginasial do colégio-militar...
... na tijuca...
minha prima-de-são-paulo me telefona...
dizendo que estava no rio... em ipanema...
com uma amiga... hospedada na rua barão-da-torre...
no apê de um amigo delas...
perguntou se eu queria ir lá visitá-los...
como era férias de verão...
eu... obviamente... fui...
fomos à praia...
naquele horário impossível... das 11 às 4...
fiquei todo queimado-do-sol... na pele...
à noite... volto ao apartamento em que estavam...
na rua barão-da-torre...
e...
passamos um início de noite... agradável...
batendo papo...
eu... minha prima iracema... sua amiga laís...
e o zé-maurício... que morava nesse apê aconchegante...
no quarto andar...
eu me sentia à vontade...
afinal... sempre tive uma ótima sintonia...
com minha prima iracema...
escutávamos o long-play do caetano...
curtíamos a faixa...
" quero ver irene dar sua risada..."
escutávamos gilberto-gil...
" morreu atropelado em frente à companhia-de-seguros...
ó que futuro... ele falava nisso todo dia...
era um rapaz de 25 anos...
era preciso toda a garantia..."
em resumo...
nosso querido rapaz de 25 anos...
era o estereótipo do "caretão"...
do cara que só pensava na segurança material...
na garantia-de-sua-família...
um cara incapaz de ousar...
de ter a coragem de se expor...
de ter a coragem de sair nas ruas...
fazendo protesto contra essa vergonhosa...
... ditadura militar...
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e eu... ali...
no meio da turma da minha prima...
uma turma avançada...
politizada...
de são paulo...
... que curtia rita-lee... mutantes... caetano-veloso... e gilberto-gil...
eu... completamente por fora de todas essas novidades...
escutava... atentamente... a letra do gilberto-gil...
" só que ele se esqueceu... de que a gente tem que ter...
... um cantinho pra viver..."
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tudo isso me impressionava...
nem a turma do vítorino...
nem a turma do rocha-pinto...
nem a turma do ronaldo...
... conheciam toda essa atmosfera cultural...
que minha prima estava... sem querer...
me convidando para participar...
... para conhecer...
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eu olhava para toda essa repentina novidade...
com um olhar simultaneamente maravilhado... e... perplexo...
mas sentindo que alguma contradição poderia eclodir... a qualquer momento...
principalmente em relação a como eu era visto... por eles...
... pela turma que eles representavam...
turma esta... que eu muito admirava...
uma turma que era consciente dos absurdos da realidade...
que estava acontecendo no país...
ou seja... da vergonhosa ditadura militar...
e eu... naturalmente concordando com as incríveis mensagens...
das letras do caetano e do gil...
... percebia que todos eles me olhavam com olhos meio de pena...
de me ver... com o cabelo raspado...
nos moldes do estilo " réco "...
ou seja... do colégio-militar...
toda essa situação reforçava minha já nascente revolta contra o colégio...
e... consequentemente contra...
...meu próprio pai...
...que já tinha atingido... precocemente...
... o posto de contra-almirante...
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minha prima por conhecer meu pai...
irmão do marcos freire...
cuja postura-política sempre foi de esquerda...
... jamais iria classificar meu pai como um militar...
que pudesse representar aquela situação deprimente...
em que o país se encontrava...
eu... sentia de uma forma incômoda...
o nascimento desse conflito-interno...
de mim para comigo-mesmo...
conflito esse que era... por um lado...
admirar minha prima-iracema-e-toda-sua-turma-de-são-paulo...
e... por outro lado...
estar ainda submetido ao colégio-militar...
e... mil vezes pior do que isso:
ser um filho-de-militar na época da ditadura...
... esse conflito... me pertubava...
... me torturava...
... não sabia como lidar com isso...
não sabia como equacionar...
... tal equação diferencial de ordem-infinitesimal...
em suma: ...uma equação... sem solução...
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hoje em dia... depois de velho... (... 57 anos...)...
tenho a solução desta terrível equação...
a solução é:
... bem simples...
meu pai é meu pai...
e eu... sou eu...
simples !...
... não há... necessariamente um vínculo direto...
entre essas duas pessoas...
ele é responsável pelo que ele é...
... pelo que ele faz...
e eu... responsável pelo que eu sou...
... pelo que eu faço...
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mas... naquela época...
a equação não admitia solução...
as duas paralelas... não se encontrariam... nem no infinito...
era aquela coisa radical...
aquela coisa meio de adolescente...
meio imatura...
a minha percepção daquela realidade...
era a de que a "turma" estava botando uma faca-invisível...
no meu pescoço:
... " decide luis...
... ou você é filho do seu pai...
ou você... não é filho do seu pai..."
... um ultimatum um pouco cruel...
... mas era assim... que eu via a coisa...
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optei pela solução mais cõmoda...
"... não vou ser filho do meu pai... "
(... desta forma... quem sabe... a "turma" possa...
... quem sabe... um dia... me aceitar...)
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mas existiam também... outras formas...
igualmente cômodas... de ser aceito pela turma...
bastava fumar um baseado...
... e... obviamente... saber apertar um...
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não me arrependo...
essa fase da maconha... realmente abriu muitas portas...
grandes amizades... foram feitas...
graças às rodas onde...
o símbolo-da-universalidade-da-aceitação-das-pessoas...
... circulava...
afinal era a época do...
jimi hendrix... janis joplin... woodstock...
led zeppelin... the who... crosby stills nash young...
joan baez... steppenwolf... easy rider...
aldous huxley escrevendo "as portas da percepção"...
os hippies...
love and peace...
... os americanos cansados de uma guerra sem sentido...
(... como todas as guerras...)
(... obrigado... eduardo-bueno... pela última frase...)
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mas não adianta disfarçar...
não adianta camuflar...
não adianta fumar...
não adianta negar o próprio pai...
não adianta se auto-enganar...
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eu andava com duas carteiras-de-identidade...
a carteira de filho-de-contra-almirante... escondida...
atrás da carteira do instituto-félix-pacheco...
a primeira com uma cara de débil-mental...
a segunda... com o cabelão...
... atingindo os ombros...
quando a "turma-do-camburão" me dava o "bote"...
... no fusquinha...
procurando maconha para eles fumarem no arpoador...
--- eu apresentava a carteira-da-marinha...
mas... no fundo... no fundo...
o meu desejo era o de ter...
apenas uma identidade:
a do félix-pacheco... com os cabelos nos ombros...
... foto esta... que eu tinha o maior prazer em mostrar...
para quem quisesse ver...
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essa terrível contradição permeou muitos anos na minha vida...
e isso me fez muito mal...
isso me fez um cara...
... de certa forma... fechado...
esse "segredo" terrível que eu tinha que carregar...
com medo de ser rejeitado pela "turma"...
me fez ser um cara que...
ao me relacionar com as pessoas...
estava sempre carregando...
... uma mochilazinha-de-segredos nas costas...
talvez apenas um segredo...
... que pesava muito...
o de ser... filho de um militar...
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hoje em dia...
percebo que não era necessário...
ter tanto cuidado assim...
... ter tanta vergonha assim...
afinal meu pai não era nenhum louco...
como os que foram retratados no filme "cidadão boilesen"...
pelo contrário...
meu pai não tinha nada a ver...
com essa turma-pesada da ditadura...
era apenas um engenheiro-naval...
que "tocava" a construção dos navios...
no estaleiro caneco...
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portanto... se... na época de adolescente...
( ou mesmo depois... já na PUC )...
... eu tivesse uma consciência um pouco mais lúcida...
da história-do-brasil...
talvez... eu não precisasse jogar tanto na "retranca"...
como costumava fazer...
e... se por um lado existia um enorme complexo...
pelo fato de ser... filho de militar...
... por outro lado... existia um consolo enorme...
que... poderia contra-balancear tal complexo:
...eu era também... sobrinho do marcos freire...
um político... assumidamente esquerdista...
socialista... e... ( por que não...?...)...
eu poderia até divulgar... com orgulho...
... comunista...
era como se fosse uma carta-coringa...
que eu poderia carregar na manga...
mas... raramente usava tal recurso...
me conformava com meu complexo de filho-de-militar...
algo que iria... na minha imaginação...
fazer com que a "turma" me rejeitasse...
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não usava o recurso-da-carta-coringa...
( também escondida no fundo do meu baú-mental...)...
de ser sobrinho do marcos freire...
pois no fundo...
eu não acreditava muito nessa "culpa" construída artificialmente...
... "culpa" essa... produto de um êrro-lógico...
ao pensar que existe... necessariamente... um vínculo rígido...
um vínculo direto...
uma "herança"...
em relação às posições-políticas de nossos pais...
... ou parentes...
em suma...
eu não conseguia enxergar direito...
a presença desse êrro-lógico...
preferia negar qualquer identidade...
... era um rapaz sem identidade...
talvez... com um "crachá-simbólico"...
que eram os meus cabelos-longos...
tão bem expressos...
na carteira-de-identidade-do-félix-pacheco...
uma identidade-de-hippie...
que gostava de estudar...
era a identidade em que eu me sentia bem...
mas o segredo-embutido... me incomodava...
não sei se no consciente...
mas certamente no inconsciente...
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me lembrei do filme ( teatro )... "hair"...
onde eles cantam "aquarius"...
na peça... os jovens americanos queimam os documentos...
que os recrutavam rumo ao vietnam...
comigo... algo semelhante ocorria...
a única diferença é que... no meu caso...
eu guardava o documento no bolso-de-reserva...
pois caso o camburão me pegasse...
eu escaparia do assalto...
e eles... ficariam sem poder fumar...
... o charutão... no arpoador...
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mas... talvez...
o pessoal da peça "hair"...
fosse mais coerente com seus princípios...
até hoje... fico sem saber...
o que é correto...
e o que não é...
continuo procurando a verdade...
se é que ela existe...
fico por aqui...
desejando a você... tudo-de-bom...
um grande abraço...
...luis antonio...